Tibete – Sichuan
Aqui, em Sichuan, pulsa o sentir místico e ancestral do povo das montanhas, que habitam uma região tão agreste quanto sublime. Uma fábula chinesa narrada em dialecto tibetano
O norte da província de Sichuan, a uma hora do voo da capital Chengdu, é caracterizado pela natureza exuberante das florestas, dos lagos, dos rios e dos picos recheados de neve,
sendo ainda uma região que sofre forte influência da cultura tibetana. Aqui, o ar é mais puro e rarefeito, tão fino que pa¬rece o gume afiado de uma faca. E isso nota-se mal se põe os pés no chão e sente-se nos ossos. À entrada do parque de Huanglong, recomendaram-nos que levássemos garrafas de oxi-génio. É uma medida de precau-ção – em altitude, qualquer es-forço implica cautelas. Pela frente, tem-se a subida de um vale, partindo-se de uma altitude base de 3200 metros até se atingir os 3700 metros. Sempre são oito quilómetros e meio de extensão, ida e volta. Mas também nos avisaram que nesta altura, início de Primavera, não valia o esforço. A grande atracção do “dragão amarelo” – Huanglong – são as piscinas que a água do rio forma à medida que desce vale abaixo. Agora, garantiram-nos, não há água – e sem água, não há encanto. Mas achámos que valia a pena: perdia-se a água, ganhava-se o passeio.
A subida é feita por um passadiço de madeira que facilita a caminhada De um lado, as árvores e os arbustos envolvidos pela neblina que se enrola pelas vertentes das montanhas que guardam o vale; do outro, os domínios do rio que não havia: em vez de água, sempre há neve, que conferia um ar misterioso àquelas piscinas calcificadas em socalcos, como uma cascata contínua, e cuja cor amarela se deve ao depósito dos minerais que o rio costuma transportar. Daí o nome de “dragão amarelo” – amarelo porque é a tonalidade dominante e dragão porque, na China, qualquer coisa pode ser um dragão. A cada passo, o ar é mais fino e penoso de sorver, mas há que continuar. Felizmente não faltam distracções, mesmo que sejam sempre as mesmas: montanhas, neve, árvores, terraços de cálcio, cascatas congeladas e

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as indicações de distância – 3000 metros, 1800,600… E a recompensa final: lá em cima havia água, e que água – espalhadas num círculo quase plano, as diversas lagoas calcárias estavam repletas de tonalidades azuis-turquesa que transportam rapidamente a imaginação para paragens caribenhas, não fosse o frio de rachar. As Piscinas das Cinco Cores, como é designado o cume do vale, é a cereja no topo do bolo, rodeado pela pa¬ede rochosa coberta de gelo do pico Yucuf eng. Trepei um pouco pela encosta e recostei-me na neve fofa. Olhei em redor e senti-me esmagado perante tanta grandiosidade. Era capaz de ficar ah uma eternidade, em paz com o mundo, e a deixar-me levar pelo silêncio impressionante que ecoava por todo o vale. Chegámos a Jiuzhaigou e ficámos atónitos com a fila na bilheteira do parque nacional: hordas de turistas esperam a vez para comprar as entradas. Quando franquiámos os torniquetes mecânicos da entrada vimos, com espanto, dezenas de camionetas estacionadas que arrebanhavam turistas.
“Podem entrar, esta é a vossa camioneta”, disseram-nos. Se há alguém aqui ingénuo, percebemos então, somos só nós. Passamos a explicar os motivos: antes chegarmos, decidimos investigar o que estava atrás do nome Jiuzhaigou – esta palavra que rapidamente aprendemos a decorar, ribombava constantemente na nossa cabeça. É uma região no norte da província de Sichuan, cenicamente marcada por cadeias de montanhas austeras, que denotava forte presença da cultura tibetana e que se enquadrava num espaço de inolvidável beleza natural. Era o que sabíamos. E rapidamente demos asas à imaginação – já nos víamos a passear pelos três vales daquela região remota, a parar o carro à beira da estrada e a tirar fotografias a lagos, rios e picos ne-vados, a ir a algumas das nove aldeias tibetanas que se vertentes montanhosas, a tentar dialogar com tibetanos que, acreditámos piamente, era a primeira vez que tinham um encontro imediato com europeus. Em Jiuzhaigou, seríamos uma espécie de extraterrestres. Agora, perante o

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quadro que temos pela frente, sentimo-nos corar, não de vergonha, mas de ingenuidade. Também temos de admitir que sentimos uma ponta de desilusão, mas os dias que se seguiram vieram desmentir esta sensação. Jiuzhaigou é exclusivo – mesmo que repleto de milhares de visitantes. O parque está organizado de forma a facilitar a vida dos que o visitam e, ao mes-mo tempo, também facilita a vida das espécies que o habitam, sejam animais, vegetais e humanos. Apesar de se poder fazer a pé todo o percurso dos três vales, o que é impossível num só dia, a maioria opta por apanhar a camioneta à entrada e, depois, ir saindo em cada uma das paragens, normalmente situadas à beira de uma atracção. Dão umas voltinhas pelos arredores, tiram umas quantas fotografias – os chineses são obsessivos com as fotografias e fazem questão de aparecer em poses muito pe-culiares, para não dizer outra coisa e esperam pela próxima camioneta que os leve até à atracção seguinte. Compreende-se que muitos o façam desta forma, muitas vezes por limitações de tempo, mas acabam por perder a essência de Jiuzhaigou.
Seria fastidioso descrever Jiuzhaigou – Vale das Nove Al-deias, numa tradução à letra -, pois perante tanta beleza, acabariam por se esgotar os adjectivos para classificar este Património da Humanidade. O que se aconselha é não andar exclusivamen-te de camioneta e aproveitar para fazer alguns dos melhores pas-seios de uma vida. O troço inicial subdivide-se, cerca de 18 quilómetros acima, em dois vales que rumam aos grandes maciços montanhosos e a altitudes que raiam os 3000 metros. O parque consiste no acompanhamento dos rios que resultam da fusão das neves que se desprendem das montanhas e que, no seu trajecto descendente, vão formando uma sucessão de lagos, lagoas e cascatas, devidamente espartilhados por montanhas altaneiras e florestas exuberantes. Tudo parece saído directamente da saga O Senhor dos Anéis. Falada a paisagem,

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fale-se das gentes. Jiuzhaigou é composto por nove aldeias tibetanas. Shuzheng Zhai é a mais movimentada, e atrai logo pela quantidade de bandeiras de orações de todas as cores que rodeiam o stupa dos Nove Tesouros. Desde a criação do parque natural que a aldeia deixou de estar isolada e que os seus habitantes deixaram de se dedicar à agricultura e à pastorícia – a rua principal é uma espécie de feira de lojas de artesanato e de engodo aos visitantes. Aqui, o turismo e a caça ao turista mostrou-se muito mais rentável e veio para ficar. E os automóveis modernos e as antenas pa-rabólicas erguidas nos telhados não são só contrastantes como, sobretudo, indicam como estes tibetanos tão bem se souberam adaptar à era moderna.
Heye, a primeira aldeia do parque, é uma das mais tranquilas. Não há esplanadas, cafés ou casas de chá, mas, perante o frio de rachar, batemos à porta de uma das casas. Uma octogenária espreitou pelo postigo, surpreendeu-se por ver rostos tão estranhos, mas o sorriso desarmou-nos. Olá, dissemos. Puxou-nos para dentro e levou-nos para um anexo – a cozinha. A lareira, bem como as quatro paredes e o tecto, souberam bem à alma, mas sobretudo ao corpo a tiritar de frio. Em meia-hora, tínhamos à frente uma tigela de chá tibetano, pão, uma malga com massas e carne de iaque. Com as mãos roxas e trémulas de frio, peguei na tigela de chá, que tinha umas espécie de borras a boiar no líquido. Engoli o chá quente que me aqueceu por dentro, mas sobraram as ditas borras amareladas. Pavoroso, foi uma das coisas mais horríveis que alguma vez provei aqueas bolinhas amarelas eram manteiga de iaque, cujo sabor é cem mil vezes pior que o próprio cheiro.
Fonte: Metro
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